quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

vestígios

Vestígios...

Num peito translúcido, a vagar, um coração sem rumo na translação do tempo sem tempo. Sumo precioso nem amargo nem doce que corre na garganta de furiosas ventanias a devastar sem piedade, para que um novo dia nasça realmente novo, sem nada de ontem. Só as curvas do porvir no sorriso da que acena na varanda sem medo do presente, vivendo o agora dando adeus ao que passou e ao que virá numa prece: - Adeus silêncio nostálgico dos tempos; adeus tudo que não deu certo; adeus migalhas de amor; adeus último reduto de mariposas próximo à estação ferroviária de minha adolescência; adeus meninas do ginásio católico: Cássia, Jane, Simone, Romênia, Sônia, etc. Antigas Santas Imaculadas, hoje senhoras desfloradas. Mais um adeus às primeiras caçadas na Praça da Matriz, ao próximo poema beat, ao vigésimo gole de Kariri com k, às primeiras linguaradas; adeus à inocência de um quase puro rapaz. Só assim meu mundo se desfaz e se refaz na perspectiva de todos os perigos. De todos os deliciosos perigos que deslizam na língua que lambe virginais lábios e corre desesperada pelas páginas do olhar puritano. Adeus amolado e pontiagudo amor que encoraja os demônios e exalta os deuses com imensas festas no altar do orgasmo. Eu ainda sonho contigo me puxando pela mão dentro da multidão. Meu sangue jorra ensandecido em cada letra da palavra adeus, que por força das circunstâncias, fui obrigado a dizer. Mas sei que a vida é composta e descomposta de chegadas e partidas como na algazarra da estação onde o apito do trem celebra as saudades e as festas dos que chegavam ou partiam, restando hoje na memória só o aceno e a lágrima. E nele me apago ou me acendo, feito o farol das letras, na tempestade das frases que agita o mar de palavras e destroça o porto seguro de cada parágrafo da prece vexada, rezada quase pelo avesso da embarcação que parte num adeus desnorteado. Aonde vou? Aonde vou parar? Não sei. No lugar certo, quase sempre penso ao sair de casa para “grandes navegações”, sem saber se volto. Só sei que nada é igual ao lusco-fusco de ontem na sala repleta de vestígios da geração passada, que são pontos portos de partida para inexistência além do animal que se repete, se divide e se transfigura em pensamentos, ações, desejos, e na força ferina do ferro onde enrosca-se a fortaleza da carne e transcendência do que vive enquanto morre. Pois tudo sempre volta ao nada. E voltará. Em ritmos. Formas. E cores surpreendentes.

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